Nunca houve dias perfeitos. Pelo menos para nós, portistas. Nem aqueles em que vencemos, porque as vitórias são o caminho, não o destino. Somos capitalistas no sucesso. Há sempre mais qualquer coisa para ganhar. Passámos tantos anos a codificar esta natureza de insatisfação permanente nos nossos genes que já não nos é possível beber e cair sem pensar na campanha seguinte.
Ainda mal empossados como campeões e já a mente navega em conquistas que ainda não aconteceram, temporais que nos aguardam, noites em que voltaremos a ser nós contra tudo e todos. Ser portista é obedecer a um ritmo de vida alucinante, exigente, cada vez mais desgastante. É perseguir a diferença, ter a vontade demolidora de polarizar o mundo, desafiar convenções, centrifugar a ordem decretada das coisas. E tirar prazer disso.
Perdi a conta ao tempo que passou desde a última vez que senti o aroma a terra ensopada. Foram muitos meses exilado na nau, agarrado às cordas, à madeira empobrecida, a vaguear no princípio da incerteza sem saber se haveria futuro. Não fui convidado, entrei à socapa na barca, num dos mil buracos que todos lhe apontavam antes de partir.
E ela aparentava ser frágil, despida, condenada desde o berço, feita de sobras, troncos e escombros. Mas fintou as expectativas e voou e voou e continuou a voar na trama dos retalhos que fingiam ser velas. E que, com o tempo, se tornaram velas.
Marega, por exemplo, esse empecilho que só servia para caricaturar uma política de contratações anedótica virou o escárnio contra os escarnecedores e transformou-se no piloto da equipa, o astrolábio inesperado que vectorizou o jogo do FC Porto. O maliano foi a figura de proa deste colectivo e os números estão com ele. Enquanto esteve presente, o FC Porto ganhou quase todos os jogos e esteve sempre em primeiro lugar. Quando se lesionou, em março, após a vitória crucial sobre o Sporting, na tangente de um ciclo que se considerava o mais abrasivo da época para o FC Porto, os seus colegas perderam o norte em campo, o conforto da referência que só reencontraram após o regresso de Marega em bom tempo, antes da Luz. Marega não nasceu para jogar futebol e ele sabe-o, ninguém precisa de lho dizer. Mas encontrou a sua essência no acessório, no físico, não no técnico, tirando partido das suas características para arrastar o jogo do FC Porto para a frente. Foi ele quem segurou o barco muitas vezes, quando choviam bolas inconsequentes à procura de um toque de fé. Não é o futebol mais bonito que tivemos, mas foi eficaz. Sobretudo, porque Marega estava lá.
O capitão
Herrera foi o último a descer do barco quando aportámos. Fez questão de olhar para trás e deitar um último olhar sobre o imenso mar azul. Foi Herrera quem nos ensinou a não desistir. Que nos demonstrou que o erro não nos condena. Somos nós próprios que nos condenamos por errar. Foi Herrera que nos relembrou a esquizofrenia do futebol, a dança frenética entre a besta e o bestial. Foi Herrera que elevou o símbolo onde muitos elevariam o nome. Herrera foi o gerente de campo, um capitão silencioso mas sensato, que redescobriu a vontade de jogar de futebol com a função certa. Herrera não é bombeiro, nem sapador, nem maestro nem artista. Herrera não cabe no futebol académico, no jogo teórico, mas também não é difícil de compreender. É um médio com atitude e amplitude, liderança na voz e no pé, que joga em linhas rectas. Herrera é o transportador que procura encurtar distâncias sem forçar a bola a fazer desvios. Joga simples e sem merdas. Como o seu pontapé na Luz. O capitão abateu o polvo quando o polvo já fugia. E quando já nenhum de nós acreditava.
A experiência não abundava no convés quando içámos as primeiras velas e navegamos os primeiros mares. Mas havia
Iker, uma lenda do Atlântico que fez história e depois tornou-se a própria História. Entre nós, havia quem lhe chamasse santo. Talvez porque Iker era a forma mais aproximada que tínhamos de tocar o céu e pedir intervenção divina quando a barca ameaçava ceder. E a verdade é que as luvas abençoadas de Iker nunca falharam quando mais precisámos. Quando toda a gente desistia de segurar a nau e assistia impotente à inevitabilidade do destino que Iker se encarregava de desmentir. Como naquele paradón no Dragão, contra o Sporting, em que Montero tinha mil formas de nos desfazer e Iker apenas uma de nos salvar. E hoje aqui estamos, vivos, graças ao santo que largou o conforto do Éden para se aventurar connosco neste cemitério andante.
A convicção de
Brahimi é algo que dificilmente esquecerei. Foi, desde cedo, o que mais queria vencer. Atravessou connosco um deserto de títulos e ideias e, tal como nós, também chegou a morrer na praia antes de tentar uma última vez. Ele sabia que esta seria a última vez. Quando o polvo atacou na Feira, Brahimi subiu mais alto e viu no horizonte a vitória final. É um navegador louco. Desatou os nós mais intrincados e brindou-nos com as manobras mais elegantes que vamos ver em muito tempo. Consola-me saber que poderei revisitar a sua magistralidade individual, finalmente apurada para o colectivo, e a sintonia cega com Alex Telles, criando a bombordo uma orquestra de luxo que vai continuar a ecoar por muitos anos.
E tudo isto aconteceu porque encontrámos a peça que faltava para redimir o conjunto.
Sérgio Conceição, o homem do leme, a quem tentaram prender, impor uma fé. É fundamental ser bom estratega para vencer uma batalha. Mas não é possível vencer uma guerra sem coragem nem inteligência emocional. Conceição teve tudo isto, nos momentos certos. Tentou, errou, aprendeu, acertou. Foi humilde. Contrariou os profetas da raiva. Geriu o descontrolo e a adversidade com um brilhantismo incrível. Mas o que mais admirei nesta viagem foi a forma como Conceição adaptou o barco aos homens, quando toda a gente faria o contrário, invertendo a lógica dominante e arriscando uma ideia audacioso mas francamente lúcida. Só hoje sinto o aroma a terra ensopada ao comandante agradeço. Fomos gigantes no mar da Galileia.
Mas não há dias perfeitos. O polvo feriu mas não morreu. Já refeito, começo a caminhar em direcção às primeiras cabanas da praia, onde espero encontrar um lugar para comer e dormir. Enquanto caminho, penso no que fica por fazer. Naturalmente insatisfeito, porque é só um título nacional. Ser portista fez-me assim.
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The Storm on the Sea of Galilee | 1633, Rembrandt |