sexta-feira, 6 de março de 2020

Parasita ideológico


Mais tarde ou mais cedo, vamos ter de aprender a lidar com aquele vírus super contagioso que tem feito notícia nos últimos tempos por ameaçar destruir a sociedade. Falo, claro, de André Ventura.

No futebol há o falso lento. Aquele jogador que é lento a correr mas rápido a pensar. São tipos que sabem que o que deve rolar no campo é a bola, não o jogador. André Ventura é um falso facho. Não é um ultra nacionalista de causas profundas mas alicerça a sua mensagem nessa mensagem porque sabe que tem eleitorado para ela. No fundo, Ventura sabe que fazer circular a sua bola no espaço público permite-lhe chegar onde quiser sem grande esforço.

André Ventura é um parasita ideológico. Não é conhecido pelo passado político sólido nem pela firmeza das convicções. A única coisa estável que se sabe dele é a cegueira pelo Benfica. A dada altura da sua vida, André Ventura deve ter tido uma escaramuça com algum cigano e deve ter partilhado a história com amigos que lhe disseram “epá, mesmo a sério, a ciganada não interessa a ninguém”, percebendo ali mesmo que havia todo um mercado por explorar na política portuguesa. E que ele, estando em posição privilegiada a vender opinião e imagem num dos maiores megafones audiovisuais do país, podia aproveitar.

A persona política de André Ventura comporta-se como um vírus: adapta-se aos outros, não fica à espera que os outros se adaptem a ele. Com a mesma facilidade que critica o populismo e defende as minorias numa tese académica em 2013, Ventura consegue ser populista e promover a perseguição étnica nos palanques em 2019. A estratégia de cata-vento na política é um truque antigo, mas mesmo os cata-ventos mais flexíveis têm limites: Ventura não. Essa ginástica moral marca a diferença entre o Chega e o PNR e explica porque é que um resulta em Portugal e o outro não.

O problema na transmissão da mensagem do PNR não é Pinto Coelho e a sua quase inexistência mediática. Nem o da NOS é a figura delinquente de Mário Machado. O problema é que esses partidos tomam o preconceito como ponto de partida. Esta extrema-direita concentra 90% do discurso à volta do nacionalismo, na necessidade de blindar Portugal, “desinfectar” a cidadania, e os restantes 10% em políticas migratórias de intolerância e persecução. A mensagem morre mesmo antes de se libertar do espectro ideológico porque as propostas são invariavelmente desfasadas da realidade social do século XXI. Se pusermos nisto em perspectiva, a velha extrema-direita em Portugal tenta construir casas pelo telhado.

Ventura tentou essa abordagem em Loures, quando fez da sua bandeira eleitoral o programa anti-ciganos. Era inexperiente, estava a começar e foi naturalmente arrasado nas urnas. Mas, uma vez mais, percebeu rapidamente onde estava o problema da mensagem: na forma, não no conteúdo. Não perdeu tempo e ajustou-se. Deixou de falar de minorias étnicas e passou a falar em minorias sociais. Deixou de falar de ciganos e africanos e passou a falar na sobrecarga do aparelho do Estado com despesas sociais. Deixou de falar de migrantes e passou falar dos problemas que a polícia tem para combater a criminalidade. Deixou de falar de etnias preguiçosas e passou a concentrar-se nos “portugueses que pagam impostos”. Deixou de falar nos criminosos e passou a falar do enquadramento penal. Meia palavra basta para compreender a agenda de André Ventura.

De certa forma, o novo Ventura passou a elevar a Portugalidade acima de Portugal e da Constituição, porque é nos cafés, nos bailes, nas feiras, nos centros comerciais, nos estádios, nas tradições, no conservadorismo que vive essa Portugalidade que dá votos. É a eles que ele se dirige.

O último plano de Ventura foi bem executado. Primeiro, aproveitou as bandeiras do populismo de direita para ganhar força. Depois, colocou a Portugalidade em primeiro e o país em segundo para colher simpatia. Por fim, apostou tudo na demagogia extrema para adquirir credibilidade. Porque sabe que a demagogia produz credibilidade.

Como se destrói politicamente André Ventura? A reprimenda pública não serve. Deixar-se consumir pelo ódio a tudo o que Ventura representa é deixar cair a bigorna nos pés, tal como demonstrou o episódio “vergonha” com Ferro Rodrigues. Os debates televisivos contra Ventura são inúteis. Ventura sabe -- aprendeu na melhor escola -- que os debates na televisão portuguesa são ganhos por quem berrar mais alto e falar mais depressa. O desprezo também não funciona porque Ventura tem o desplante, os meios e os amigos certos para não se deixar apagar. Tentámos fazê-lo quando chegou ao Parlamento, mas falhámos. As sondagens deram-lhe razão. Como se destrói então politicamente André Ventura?

Percebendo que o seu eleitorado é fixo e irreversível. Aceitando que já os perdemos para ele. Reconhecendo que não é para esses que devemos falar. É para todos os outros.

Destruir Ventura é deixá-lo ser ele próprio. Mais tarde ou mais cedo, Ventura vai ser esmagado pelo peso da sua própria hipocrisia: desde o incumprimento da exclusividade como deputado à memória seletiva na sua luta pessoa contra a corrupção, que choca sempre contra um muro chamado Rui Pinto.

Expor Ventura como aquilo que é - e não aquilo que diz ser - é a única forma de fazer colapsar o manto artificial que o esconde. Ventura não é facho, é só uma parasita que usa os verdadeiros fascistas como hóspedes do seu expediente. Quando essa camuflagem cair e a persona política de Ventura for esvaziada, André regressará ao seu antro na CMTV e o seu eleitorado voltará para a sombra com ele.

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