segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O país que Marega expôs


Hey, Moussa.

Todas as semanas penso em 10 formas diferentes de te mandar à merda. Exasperas-me porque és o arquétipo de um futebol que não é o meu. Mas em três, quatro anos da relação unilateral que temos, algo que nunca fiz, nem na pior das minhas reações sísmicas provocadas pelas tuas recepções de bola, foi chamar-te macaco ou mandar-te de volta para a tua terra porque isso seria cabalmente estúpido. Porque a tua terra é a minha. Porque és tão símio como eu. Porque a cor é uma mera distorção da luz. Porque, no fim do dia, vivemos todos debaixo do mesmo tecto e sobre o mesmo solo. Na personalidade de cada um há fronteiras, no ADN não.

O que viveste ontem foi das experiências mais bárbaras que qualquer ser humano pode atravessar. Uma lapidação sem pedras perpetrada por um clã que já serviste. 70 minutos de humilhação condensados em cinco minutos de fogo e fúria. E mais 180 minutos de “análise” em redes sociais e programas de futebol. Como se o racismo ainda precisasse de análise.

Acima de tudo, o teu gesto expôs aquilo que a sociedade portuguesa é: fracturada, sectária, facciosa, de causas autistas, viciada em ideais vazios, balizados pelo absurdo. Cavaste um fosso entre os que lutam contra o problema e os ratos que deixaram de se esconder atrás do muro do racismo envergonhado. Ajudaste a separar o trigo do joio, a traçar uma linha entre nós e os Venturas. E tenho de te agradecer por isso.

Ao forçares o fascista a pegar no facho estás a mostrar quem deve combatido. É o melhor para todos. É preferível saber quem são.

O problema não começa nem acaba no futebol. André Ventura, o aiatola destes novos purificadores da raça, é só um sintoma do lento envenenamento a que nós, enquanto sociedade, estamos a ser submetidos. Com ele a carregar o estandarte, torna-se mais fácil para os Ruis Santos e Alexandres Guerreiros deste canto perderem a vergonha e assumirem a natureza aristocrata e segregadora que realmente carregam. São esses os vírus que agravam esta epidemia sociológica, com a particularidade de terem um transportador mais eficaz, o tempo de antena em televisão, que lhes confere mais poder de contágio.

A tua saída de campo, inédita no futebol nacional, foi icónica e não será esquecida. Fala por todos os que estão deste lado do abismo. Fala pelo Hulk e pelo Nélson Semedo. E pelos rostos anónimos que todos os fins de semana sentem o mesmo ardor do ódio na pele.

A História vai encarregar-se de marginalizar o resultado e o impacto que a vitória do FC Porto pode ter nas contas do campeonato e guardar o que genuinamente interessa. Ontem, os ratos ganharam nome. Obrigado por teres clarificado isso.

6 comentários :

  1. Obrigado pelo artigo, que fica na História como caso único e que haja decisoes rapidas das equipas de arbitragem para evitar isto no futuro.

    ResponderEliminar
  2. Extraoordinário! Que se convide o Andre Ventura a ler este texto.

    ResponderEliminar
  3. Tenho 57 anos e moro em Guimarães à 25.
    Gostaria de comentar este ato vergonhoso com o Marega.
    Posso constatar que existem por cá, boas pessoas que condenam veementemente esta manifestação racista, será coincidência nenhuma delas frequentar os estádios de futebol?
    Mas existem, muitas mais, mesmo muitas mais, que me dizem mais ou menos o seguinte:
    Sim, foi chato, mas o Marega pôs-se a jeito, pois como já cá jogou nunca deveria ter festejado o golo....
    Sim, foi chato, mas isto acontece em todos os estádios de futebol ....
    Sim, foi chato, mas os jogadores de futebol não devem responder às provocações....

    Nenhum deles ouviu qualquer cântico racista (não, nenhum deles é surdo!), nenhum deles defendeu ou repudiou categoricamente o sucedido, esconderam-se atrás do covarde NIN.
    Sim o NIM é a arma dos covardes, pois não é carne nem peixe, é o caminho mais fácil, já o SIM, EU SOU RACISTA! ou o NÃO, EU NÃO SOU RACISTA! É um ato de coragem, pois acarreta consequências, iremos sempre agradar ou desagradar a muita gente

    ResponderEliminar

Comenta com respeito e juízo. Como se estivesses a falar com a tua avó na véspera de Natal.