sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

1904

A empresa X tem um livro preto onde regista todas as operações que faz. Legais e obscuras. Um funcionário desertor decide fotocopiar páginas do livro e lançá-las pela janela. Na rua, espaço público, transeuntes apanham as páginas e testemunham-nas. A empresa X decide perseguir e ameaçar os transeuntes.

O parágrafo anterior podia ser a sinopse de uma série de ficção da Netflix ou uma distopia imaginada por Orwell ou Bradbury, mas não é. É real e grave, é próximo e sinistro.

Ontem, um mero clube de futebol decidiu notificar empresas nacionais para instaurar processos disciplinares aos funcionários que tenham lido material no domínio público. Ontem, um mero clube de futebol tentou coagir a população de um país. Ontem, o Estado Lampiânico abandonou de vez a sua alcunha mais célebre: Sport Lisboa e Benfica.

Estamos perante um de dois cenários hediondos.

Ou a lógica do absurdo, onde, seguindo a linha de raciocínio do Benfica nos últimos tempos, o clube quer proibir pessoas de ler emails falsos. (!)

Ou a lógica do abuso, onde o Benfica quer atropelar a democracia e usurpar um poder que não tem para intimidar quem não pode. (!!)

Esta tentativa de se vestir de polícia da internet e tentar controlar um povo pelo medo é o maior atentado à democracia em 43 anos.

Façam o seguinte exercício: imaginem por momentos que, em vez do Benfica, recebiam a mesma carta mas de José Sócrates, Ricardo Salgado, a EDP, o Governo, a IURD, o CDS, o Novo Banco, a Raríssimas ou a Sonae. Apelo aos benfiquistas que ainda vivem acima da linha de água. De zero a Pedro Guerra, quanta revolta sentiriam?

A ameaça do Benfica toca num outro aspeto fundamental da democracia. A queixa formalizada ontem contra um jornalista do JN por ter acedido aos emails é dos processos mais kafkianos de que há memória no país. O jornalista foi intimado por um crime que o Benfica não especifica nem quer explicar.

Que estado de direito é este em que vivemos se um jornalista não puder aplicar a sua regra mais básica de trabalho, a curiosidade? Mais do que um direito, é um dever para qualquer jornalista questionar o mundo em que vive. Sobretudo quando, sem cometer crime nenhum, tem acesso a material que está no domínio público. As ilações que tira da análise é com ele. Mas nada nem ninguém o pode proibir de escrutinar documentos. Lembram-se dos Panama Papers?

Chegámos ao ponto crítico onde a piada se transformou num caso sério. Em Portugal, o Benfica comporta-se como um regime autoritário. Mas esquece que este não é apenas um país habituado a conviver com ditaduras. É também um país habituado a derrubá-las.


4 comentários :

  1. Boa noite

    Boas festas e feliz ano 2018 Azul e Branco

    São os votos de um assiduo leitor do blog
    Gil Lopes

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    1. Obrigado, Gil. Pelos votos e pela preferência.

      Só agora vi a mensagem, mas ainda vou a tempo de lhe desejar um óptimo 2018, com paz e saúde.

      Forte abraço.

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  2. Este tipo de comportamento não se deverá, alegadamente, a um produto de 48 anos de ditadura ? Pergunto!
    Cumprimentos

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    1. É possível. A escola é notoriamente autoritarista.

      Cumprimentos.

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Comenta com respeito e juízo. Como se estivesses a falar com a tua avó na véspera de Natal.