quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Brahimi: Uma questão de fé

Desde que me lembro de existir, colecciono interesses que nunca pararam de crescer comigo.

Herdei a curiosidade natural do meu pai e cedo distingui no mundo uma miríade de coisas que me fascinam até hoje. O povo costuma chamar-lhe pancadas.

Para além da já aqui bem propalada paixão pelo futebol, sempre fui mais campo que praia, mais fotografia que vídeo, mais ciclismo que ténis, mais SUVs que crossovers, mais Kafka que Kundera, mais Censurados que Fonzie.

Porém, nunca nenhum destes ímanes pessoais me atraiu tanto como o singular mundo árabe. Em particular, aquela mancha do planisfério que chamamos de Médio Oriente e toda a efervescência que dele emana. Para mim, ateu que confessa já ter lido mais Corão do que Bíblia, é um dos puzzles geopolíticos mais intrigantes, complexos e absorventes do mundo contemporâneo.

Abramos o mapa. Apontemos àquele local onde a Eurásia parece segurar África por um braço. Quase como se estivéssemos a colocar o dedo numa ferida antiga: Gaza, o epicentro de um conflito muito mais vetusto do que os rockets do Hamas ou os massacres da Tzahal. E muito mais vasto do que o petróleo de Meged, as teses do Sionismo ou o revolucionarismo do Fatah.

O conflito Israelo-Palestiniano é uma guerra que trespassa décadas e fronteiras e que nasceu de uma mesma história contada de duas formas diferentes.

Seria redutor chamar-lhe apenas uma disputa por território sagrado. Trata-se de uma luta de génese, política e, sobretudo, fé, entre dois povos com identidades religiosas antagónicas -- judaísmo e islamismo. É talvez o maior exemplo vivo da verdadeira Guerra Santa. E nós, portistas, bem sabemos que não há espaço para duas crenças diferentes no mesmo coração.

Mas este texto não versa sobre conflitos alheios. Versa sobre os nossos. Os interiores. A jihad inócua que praticamos diariamente connosco próprios, às vezes sem nos darmos conta disso.

Precisamente o dilema que devassa Yacine Brahimi por estes dias.

O extremo argelino nunca escondeu o seu apoio à causa palestiniana. A Argélia, aliado histórico e uma espécie de meia-irmã magrebina da Palestina, não suporta nem possui relações diplomáticas com Israel. São Estados imiscíveis.

Do Magrebe, os conterrâneos pressionam Brahimi a passar “das palavras aos actos” e a boicotar a viagem a Tel-Aviv. O próprio jogador deve preferir quatro Ramadões de enfiada a ter de pisar solo israelita. Pelo que ainda sem se comprometer publicamente sobre o assunto, o argelino afirma que essa decisão diz respeito a ele próprio e ao clube que representa.

E diz bem. Muito bem até.

Sobretudo, porque essa decisão cabe mais a Brahimi do que ao FC Porto.

Brahimi: Um dos dois jogadores muçulmanos
do FC Porto. O outro é Aboubakar.
Importa esclarecer que não estamos a falar de birras ou cismas triviais, mas da força e relevância de um credo. O mesmo que levou Islam Slimani a praguejar forte e feio contra Adrien quando este o regou com meia garrafa de champanhe na Supertaça -- o islão abomina o álcool.

Sim, o FC Porto poderia fazer prevalecer os trâmites contratuais e pressionar Brahimi a jogar o jogo que o jogador não quer. Mas teria mais a perder fora do que dentro dos relvados. Estou certo de que o clube compreenderá isso.

Por isso, meu caro Yacine: subscrevo qualquer que seja a tua resolução moral. Reconheço-te pleno direito de te recusares a jogar contra o Maccabi em Israel e se a tua decisão for essa, apoio e nunca te censurarei por isso.

Não te censurarei mesmo que o FC Porto vá a Tel-Aviv sem ti e a precisar dos três pontos como de pão para a boca.

Não te censurarei mesmo que o FC Porto vá a Tel-Aviv sem ti e empate o jogo com uma exibição cinzenta.

Não te censurarei mesmo que o FC Porto vá a Tel-Aviv sem ti e perca a partida e as possibilidades de passar à fase seguinte porque faltou um rato atómico capaz de judiar toda a defesa contrária.

Nunca te censurarei pelas escolhas que faças em nome da tua família, religião, credo, raça ou ideário, se elas vierem, de facto, do âmago individual. Nem a ti nem a qualquer outro jogador do FC Porto.

Porque a fé será sempre uma questão delicada, que deve ser tratada à luz da magnitude que tem. 

E porque o futebol continua a ser apenas a coisa mais importante das coisas sem importância nenhuma.

14 comentários :

  1. Yep, um homem está sempre acima de qualquer contrato. Sem tomar partido.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É sempre uma decisão delicada para o clube e que prejudica evidentemente a instituição, porque os contratos são efectivamente para respeitar.

      Mas se ele preferir não ir a Israel, mesmo tendo pena pela falta que fará à equipa, compreenderei. Há muitas formas de ser mau profissional: esta não será certamente uma delas.

      Abraço, Silva.

      O da Tasca? Se sim, texto assombroso o das 'fronteiras a salto'. Leitura obrigatória.

      Eliminar
    2. Grazie (corar até ájorelhas). ;)

      Eliminar
  2. Parabéns! Pelo blog, antes de mais.
    Mas também pela sensibilidade no tratamento das várias questões sensíveis deste post. A disputa é tanto mais funda quanto se trata, antes da fé, da religião e respectivas consequências políticas, de uma questão interna à mesma etnia (já que os palestinianos são semitas, e não árabes).
    Acompanho na não-censura se a decisão dele for a de não querer jogar. E no respeito se a decisão for jogar, com o que poderá implicar de fundos problemas de consciência.
    Resta esperar que, num ou noutro caso, não se ergam os habituais assobiadeiros apressados que revelam mais falta de senso que exigência.
    Saudações portistas
    Filipe Ribeiro

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Filipe.

      Saudações portistas e alfacinhas.

      Eliminar
  3. A vida não é um jogo. Por mim Brahimi está dispensado. É a única via possível.

    Abraço Azul e Branco,

    Jorge Vassalo | Porto Universal

    ResponderEliminar
  4. "
    o futebol continua a ser apenas a coisa mais importante das coisas sem importância nenhuma.
    "

    a citação do Miguel Sousa Tavares, aliado ao comentário do Jorge, somado a todos os outros, fazem com que nada mais tenha a acrescentar ao teu assombroso texto, o qual subscrevo.

    abr@ço
    Miguel | Tomo III

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tenho ideia que essa frase é originalmente do Carol Wojtyla, esse mesmo, o saudoso João Paulo II.

      “Amongst all unimportant subjects, football is by far the most important.”

      Também bitaitava de bola, o papa.

      No futebol, já nada ficou por escrever.

      Pelas palavras, um profundo e orgulhoso obrigado, mestre Miguel.

      Aquele abraço.

      Eliminar
    2. "
      Este é um daqueles casos em que se desmente a frase de Albert Camus, “o futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes”
      "
      in 'dragões diário', de 05-09-2015.

      parece que "ambos os dois" estávamos errados :)

      abr@ço forte
      Miguel | Tomo III

      Eliminar
    3. (!)

      O timing do Dragões Diário não podia ser melhor!

      Fico feliz de saber finalmente a origem desse chavão tão unicamente verdadeiro.

      Forte abraço, Miguel.

      Eliminar
  5. excelente artigo, que yacine conte com a solidariedade de todos os adeptos na decisao que nao se adivinha fácil e que ela seja tomada assim que possível

    ResponderEliminar

Comenta com respeito e juízo. Como se estivesses a falar com a tua avó na véspera de Natal.