quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O Natal de 1995


O Natal de 1995 foi o pior de sempre.

Ano atribulado esse. Nasce o meu irmão e a família muda de casa, após um despejo inesperado. Para um puto até então intolerante à partilha, como eu, viver em contenção foi uma experiência azeda.


Crises não matam os sonhos de uma criança de 8 anos, por isso, passei o último trimestre desse ano a salivar pela MegaDrive, que cobiçava desde que me lembro de existir. As idiossincrasias da pré-adolescência pediam-me para encerrar em definitivo o ciclo da Lego e começar a distribuir fruta em Streets of Rage.


Quando chegaram as últimas horas do 24 de dezembro, lá estava eu hipnotizado pelo maior embrulho da árvore, alheio aos alertas que o mundo exterior me dava, os olhares insípidos e os sorrisos amarelados de quem antecipa a desgraça. Não dei por nada até começar a rasgar aquele papel colorido, às zero em ponto, pronto a acolher ali uma potente injeção de endorfinas. Mas era uma garagem da Lego. 


Imaginem o minuto 92, só que ao contrário. Com o Roderick a marcar na baliza de Helton. Multipliquem por mil. Foi assim que me senti. E voltei aos Legos.


Sérgio Conceição chega como treinador a um FC Porto muito diferente daquele que conheceu enquanto jogador. O clube perdeu poder no futebol, cedeu a hegemonia nacional, afastou-se do culto de vitória e viu o novo código financeiro da UEFA impor-lhe um quadro de restrições que nunca experienciou. Não está impedido de comprar, mas não conta com a ginástica de outros tempos. Logo, um pouco como eu e os Legos em 95, Conceição terá em 2017 a intrincada missão de conquistar o que pode com o que tem. Sem esperar grandes prendas de Pinto da Costa.


A opção Sérgio Conceição nunca foi consensual. Da mesma forma que eram poucos os portistas que o queriam em janeiro de 2016, quando esteve com pé e meio no clube, também não entusiasmou ninguém quando foi contratado ao Nantes, ano e meio depois, apesar da evolução saliente que mostrou em França. Contudo, Sérgio está a encarar o desafio com uma sobriedade inesperada, um discurso fresco e consciente e com a fome de vencer que sempre lhe conhecemos. Um trabalho silencioso, resguardado, tranquilo, que só veio à superfície nos seis jogos que equipa disputou à vista de todos, com resultados prometedores.


Sou pragmático, gosto de meter água naquela fervura que caracteriza habitualmente a pré-época. E fervura é até uma termo que assenta bem ao temperamento do novo treinador. Mas algo mudou no FC Porto, o que por si só é extremamente positivo. Ao contrário dos seus antecessores, não vejo Sérgio Conceição aborrecido por ter de brincar com os brinquedos que já tinha. Nem a fazer birras para lhe oferecerem o impossível. Antes, um treinador ciente de que o sucesso do seu trabalho passará muito por repensar um plantel que já existia.


Há muito por onde melhorar e o plantel não tem a profundidade necessária para atacar as exigências de uma época. Mas é o que temos para já. Sérgio Conceição terá de potenciar a velocidade de Hernâni, redescobrir João Carlos Teixeira, estabilizar o rendimento de Sérgio Oliveira ou encontrar a melhor forma de espremer Marega. Fazer diferente com as mesmas ferramentas.


Conceição é, por estes dias, um puto como eu era em 1995. Alienado no seu universo de Legos, satisfeito a criar novas histórias e novas formas de fazer história. Reinventar-me foi tão desafiante que esqueci rapidamente a MegaDrive.


O Natal de 1995 foi o melhor de sempre.


2 comentários :


  1. excelente!
    {texto que em muito se assemelha a uma goleada das antigas, daquelas com o Sérgio a cruzar para o Super Mário encostar - uma, duas, três, quatro vezes. fabuloso. fantástico!}

    abr@ço forte
    Miguel | 92° minuto

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