terça-feira, 1 de setembro de 2015

O mercado da fome

Ir às compras com fome nunca foi uma boa estratégia.

A privação tolhe-nos o raciocínio e influencia o cérebro a ponto de este se desdobrar numa ginástica de relativização do valor das coisas. O caro torna-se barato; o muito nunca deixa de parecer pouco e qualquer gordura passa a fazer todo o sentido. Engavetamos o longo-prazo num canto da consciência e desprotegemos o discernimento, rapidamente anexado pelo instinto do imediato.

Com o estômago em suplício, um supermercado é como um Louvre para a nossa percepção sensorial. Então se chegarmos perto da hora do fecho, multiplique-se tudo por mil.

Ora, o FC Porto tem aqui um problema de barriga.

As últimas investidas da SAD ao mercado têm sido marcadas por decisões precipitadas, práticas contraditórias e aquisições questionáveis, distantes do modelo de negócio ganhador que projectou o FC Porto para o topo dos clubes que "compram bem, vendem melhor" na Europa do futebol.

A perda da exclusividade desse modelo era previsível. O sucesso sempre foi sinónimo de exemplo e seria impossível o clube manter um método transacional tão eficaz sem ser copiado.

Jesús Corona: o agitador azteca
Mas o aparecimento de novos players nesta máquina retirou força, peso e poder ao FC Porto na esfera negocial. Os fundos e outras plataformas de financiamento tornaram-se uma realidade incontornável e açambarcaram o domínio das operações do mercado de tal forma que até o patriarca do modelo ganhador sucumbiu à dependência de terceiros.

Nenhum grande dos campeonatos intermédios europeus se pode gabar de ter escapado a este assalto. E, paulatinamente, os fundos vão começando a bater à porta da nata fina do velho continente.

Que o paradigma do mercado mudou não é novidade. Novidade é a dimensão que a subordinação dos clubes a estas third parties tomou. Surpreendente e assustadora.

Hoje, já nem os próprios clubes fazem as suas listas de compras. Entrámos na era dos catálogos por imposição, que empobrecem os cofres e a independência dos emblemas. Uma gestão Laredoutiana que, temo, tenha chegado também ao FC Porto.

O plantel orientado por Julen Lopetegui expôs cedo as suas lacunas: a falta de um criador, de um patrão e de um agitador. Mais tarde, haveria de faltar também um elemento para suprir a saída de Alex Sandro.

Com excepção deste último, os restantes dossiers foram tratados de forma unidimensional: Lucas Lima foi o único 10 que o "FC Porto" procurou; Antonio Rudiger, o único central que o "FC Porto" admitia e Jesús Corona foi o tudo ou nada do "FC Porto" na recta final do defeso.

Três atletas sem universo alternativo e com um denominador comum: Doyen Sports Investment, o 'parceiro' habitual dos dragões nestes últimos anos.

Claro que este tipo de estratégia permite manter elevados índices de competitividade lá fora. Mas não é menos verdade que o planeamento do FC Porto, ano após ano, está a tornar-se perigosamente subvertido à agenda do fundo maltês. Haverá forma de equilibrar a balança?

É evidente que nesta relação FC Porto/Doyen as duas partes pretendam garantir o máximo de benefícios e isso só será possível se ambas remarem no mesmo sentido. O clube mantém um plantel de qualidade e com capacidade para discutir títulos; a Doyen retira dividendos da valorização dos seus ativos. Casos como o de Brahimi e Imbula, a título de exemplo, corroboram-no.

Danilo: 141 jogos pelo FC Porto
Mas esta associação é igualmente a prova de que estamos cada vez mais condicionados a "comer" aquilo que a Doyen nos dá. Mais fast-food e menos hortaliça, o que torna as equipas do FC Porto cada vez menos formatadas para o longo prazo e obrigadas a profundas reestruturações anuais que em nada a aproximam de resultados desportivos em série.

A ideia de projecto tornou-se obsoleta. A falta de ciclos duradouros ou apostas de futuro, como foram as bem sucedidas contratações de Danilo e Alex Sandro, talvez as duas últimas duas bandeiras do tal modelo ganhador do clube, traduzem-se em momentos como o de ontem, onde o FC Porto se vê agrilhoado aos únicos alvos que o catálogo tem para oferecer, sendo forçado a arrastar os processos quase até ao fecho das persianas do mercado.

Uma situação anormal noutras alturas, mas sinal (inquietante) dos novos tempos.

Corona transborda de promessas, mas ainda não é uma certeza. E o preço pago pelo mexicano é um numero pesado e que deixará muita gente a salivar pelas contas do próximo exercício.

Sobretudo quando no plantel existia um jogador português com um potencial muito semelhante, que se tornou na mais recente vítima da espiral de empréstimos dos quais os jogadores do FC Porto raramente regressam.

Falo, claro, de Ricardo Pereira: defesa-direito na equipa A, extremo na equipa B e avançado na selecção. Uma cobaia que merecia ter sido muito mais do que isso.

Uma gestão mais inteligente dos próprios ativos também ajuda a reduzir o risco e a influência exercida por terceiros no planeamento do clube. E é um bom princípio para começar a aliviar este grilhão.

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Nota final: Não me esqueci de Miguel Layún. Recordo-me vagamente dele no último Mundial, naquele caos organizado que era o México de Miguel Herrera. Enquanto pessoa, do que tenho visto, demonstra uma selfawareness invulgar, uma maturidade assombrosa e mostra ser um exemplo de perseverança a vários níveis. Terá peso no balneário. Eis uma curta mas agradável história de superação. Recomendo:



3 comentários :

  1. Gostei do texto, subscrevo o seu conteúdo.
    Também apoio o Lopes, mas espero que - redefinição do plantel e evolução da equipa à parte - tanta mexida não dinamite a estratégia que ele terá gizado para voltarmos a vencer. Esperemos, pois, pelos resultados para julgarmos toda a estrutura.
    BMS

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    1. Nem mais, BMS.

      Também acredito no Lopetegui, sobretudo pelo carácter que demonstra e por ter registado uma evolução significativa em certos aspectos do seu perfil como homem e treinador. Julgo que, no geral, é timoneiro para nos levar a bom porto.

      Precisa é de bases que perdurem, essencialmente, mais de um ano. Ter de reconstruir o telhado todos os verões dá ruína pela certa.

      Abraço e obrigado pela intervenção.

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  2. Muito interessante o post.

    O paradigma mudou, é um facto.
    Mas não foi apenas por imposição do mercado, foi também por opção do clube.

    O colapso financeiro de 2008 e as suas implicações na banca mundial, bem como a desgraça do BES e a auto-destruição da PT, levaram a que boa parte das fontes habituais de financiamento desaparecessem. O que obrigou a procurar novas soluções.

    Mas independentemente disto, a política de contratações também se alterou por vontade própria. Com Danilo e Alex iniciamos um novo ciclo, contratando jogadores por valores muito superiores ao que até então se ia fazendo (exceptuando nos avançados, que são sempre muito mais caros). E com isto, o nosso risco aumentou exponencialmente. Sim, porque a compra dos dois laterais foi um grande risco, apenas minorado pela valia de ambos. Mas se retrocedermos 2 ou 3 épocas, vemos que na altura a incerteza quanto à venda de qualquer um deles por valores que compensassem o investimento era muito elevada.

    E daí em diante, sobretudo com a chegada de Lopetegui, a aposta tem sido sempre maior e mais arriscada, juntando-se uma nova vertente - trazer jogadores por empréstimo - que esvazia a estratégia de comprar barato, valorizar e vender.

    É complexo, é difícil, mas é opção. Os fundos não são um mal por si, passam a ser quando os negócios não são claros e quando impõe aos clubes jogadores que não interessam. E hoje estamos neste enquadramento... só vencendo consecutivamente é que o povo azul e branco continuará a ignorar estes assuntos, mas ainda assim há coisas que nem as vitórias conseguem esconder. Como o sacrifício de jovens talentos nacionais em benefício de jogadores que têm mesmo que vir, doyen a quem doer.

    Um abraço portista

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