terça-feira, 22 de setembro de 2015

Abraço de pedra

Helton e Casillas: Abraço de pedra

Enquanto deambulava pelas imagens da festa de domingo, tropecei neste momento poderoso. Uma fotografia que me deixou ancorado durante largos minutos.

O quadro, captado por um dedo cirúrgico, não deixa espaço à dúvida: esta época, o FC Porto joga com dois guarda-redes.

Era praticamente impossível prever as consequências que a contratação de uma supernova do futebol mundial como Iker Casillas comportaria sobre um dos maiores pesos-pesados dos dragões nos últimos anos, Helton Arruda.

Perspectivava-se um choque de titãs. Temia-se o paradoxo da omnipotência. Que o telhado fosse curto para dois egos astronómicos. Que o mediatismo de Casillas sentasse o simbolismo de Helton no banco. Que, no meio de tudo isto, a métrica fundamental para a titularidade passasse a ser o decreto em vez da qualidade.

Nem era por má fé.

   
Helton. 321 jogos pelo FC Porto.
Recorde-se o Helton do final da época passada. Uma bomba-relógio em tic-tac acelerado. Um tipo visivelmente saturado, com futuro incerto no clube, armado com uma retórica suspeita contra uns e recados mal encriptados para outros. O guardião brasileiro foi o espelho das atribulações que marcaram a recta final da temporada transacta e nunca se escudou de responsabilizar -- directa ou indirectamente -- o treinador por isso.

Tanto que a sua renovação surpreendeu alguns quadrantes, que já esperavam que a rota de colisão iminente entre o jogador e Lopetegui cumprisse a trajectória. Mas a bomba não explodiu.

Depois, Casillas parecia querer fugir de Madrid como quem ansiava escapar da prisão. Da cidade, do país e do clube, onde já só mantinha uma aura ténue por força dos 25 anos de blanco. O guarda-redes fora finalmente vencido pela enorme pressão da imprensa espanhola, que não é mais do que uma alcateia de hienas sedentas pelo próximo erro de Iker. Os jornais nunca viveram das boas notícias.

Porém, a chegada de Casillas ao FC Porto não foi o gatilho do caos preconizado.

Em parte, porque Helton é enorme. Entre os postes e fora deles. O primeiro capitão estrangeiro da era Pinto da Costa não chegou à braçadeira por promoção automática. Fez por isso. Leva 321 jogos com esta camisola. O que dá qualquer coisa como 29.000 minutos, ou quase 500 horas, a guardar o templo. É muito, muito tempo. Teve os seus momentos negros, verdade. Contudo, também foi o farol deste emblema em incontáveis ocasiões.

Quando o internacional espanhol aterrou no Porto, Helton percebeu que lhe estava a ser endossada uma responsabilidade bem maior e mais exigente do que defender a baliza do FC Porto: defender o FC Porto. Proteger o grupo, o plantel, o balneário.

O brasileiro abraçou esse desafio. Entende-se melhor com o basco e consigo próprio. A pouco e pouco, torna-se no adjunto não-oficial de Lopetegui. O cordão umbilical entre o técnico e a equipa. Interventivo, inteligente, irrepreensível. O que envolve também transmitir confiança e afecto ao novo dono da baliza do FC Porto. Levantá-lo nos piores momentos. Erguê-lo nos melhores.

Iker. 725 jogos pelo Real Madrid.
Casillas também ajudou. De que maneira. O guardião mostrou que humildade e estrelato são duas palavras com o mesmo tamanho. Poderia ter feito como a maioria dos endeusados fazem sempre que descem do seu Olimpo para jogar noutras paragens. Aterrar em cima do piano, de estatuto na mão. Mas não. Olhem para a foto de domingo: é Casillas quem, no fundo, parece uma criança agarrada ao ídolo. Icónico.

Em Espanha, dizem-no frágil. Foda-se: é óbvio que é frágil. Espanha toldou-o assim. Tem uma câmara apontada a si durante 90 minutos de cada jogo. Tem um programa em horário nobre na televisão espanhola a registar cada arroto que dá. Tem colunas em revistas dedicadas a avaliar a sua performance a descascar camarão na marisqueira de Matosinhos. A comunicação social espanhola tem um sismógrafo a medir permanentemente a vida de Casillas. Diria até que possui os direitos de privacidade do jogador. Hediondo.

Se eu vivesse um autêntico Truman Show como este que Iker vive, acho que também questionaria a minha sanidade mental.

Podia ter havido resignação e amuo, em vez de respeito e admiração. Mas Helton e Casillas, dois monumentos vivos, comportaram-se como os ícones que efectivamente são. Monstros que conseguem coabitar no mesmo espaço.

O abraço entre ambos no final do clássico é sintomático. E mais um daqueles momentos em que o silêncio de uma fotografia nos diz tanto.

Um verdadeiro abraço de pedra.

Imortal.

4 comentários :

  1. Grande(s). O Iker, o Arruda e o post!

    ResponderEliminar

  2. @ drax

    b-r-a-v-o!
    (o Silva já disse tudo o que tinha para escrever)

    PS:
    ainda não consegui desculpar o Helton pelas declarações ridículas no Restelo.

    abr@ço forte
    Miguel | Tomo III

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu compreendo. Também não gostei. Acho que foi um acto irreflectido, ainda para mais de quem tinha a responsabilidade que tinha. Era escusado, sobretudo em praça pública, rebentar daquela forma.

      Mas este ano, Helton parece estar em modo de redenção. E, mais importante ainda, aceitou a sucessão da baliza com naturalidade (ao contrário do que manifestou o ano passado).

      Encaro isto desta forma:

      i) a relação Helton-Lopetegui 2014/2015 esteve longe de ser a melhor. Houve muito atrito, que culminou com aquele recado desnecessário no Restelo de um Helton claramente desorientado depois ter visto o FC Porto voltar a dar nova abébia do tamanho dos Jerónimos.

      ii) a relação Helton-Lopetegui 2015/2016 está completamente diferente. Alguém fez mea-culpa. Ou ambos. Falaram, entenderam-se. Há uma simbiose que nunca houve. Helton chega-se à frente como nunca e assume-se perante como patriarca daquela família. Aquela escolta ao Maicon no intervalo do clássico foi determinante para não enterrarmos o pastel. Lope agradece, porque ganhou um braço-direito na gestão do grupo.

      iii) a relação Casillas-Helton não podia ser melhor. Respeito mútuo. Admiração profunda. Não vejo competição sequer. Vejo um Casillas que sabe que o lugar é dele, porque foi contratado para isso. Vejo um Helton que percebe que a nova função é defender de fora. Como fez no clássico. Perfeito.

      Resultado: vitória inesperada do FC Porto, num foco que tinha tudo para ser instável.

      Esperemos que este equilíbrio se mantenha.

      Eliminar

Comenta com respeito e juízo. Como se estivesses a falar com a tua avó na véspera de Natal.