sábado, 15 de agosto de 2015

O primeiro dia do resto das nossas vidas

Quando eu era miúdo, não havia Porto em Lisboa.

Havia o porto, os morcões, os tripeiros e os andrades. Havia os sarrafeiros, os cão-peões e os cabrões. Havia pena e deboche, desprezo e desdém pelo Norte.

Ser de FC Porto, aqui, era inconcebível. Quase como ter uma trissomia futebolística, ser membro da carbonária ou ter um guilty pleasure.

Porque "a melhor coisa que há no Porto é a placa a dizer Lisboa". Perdi a conta às vezes que ouvi essa frase.

Morava nas traseiras da capital, num dos mil bairros da periferia, antros para onde a ditadura varria o entulho social que o pós-25 de Abril deixou a apodrecer lentamente.

Era um bairro com resquícios da austeridade de '83 e um leve perfume a miséria. Os prédios engalfinhavam-se em ruas apertadas como os dentes de uma criança a lutar por espaço nas gengivas. As casas, baixas, gordas e mal-feitas, como os homens que passavam tardes inteiras debaixo do toldo dos cafés a contemplar a infinitude da avenida; odor a tabaco ressequido de manhã, cheiro a gasóleo e fritos à noite.
Era assim.

Ali não havia ringues; jogávamos à bola na estrada, com uma Mitre comprada no Ibérico e calhaus a denunciar as balizas, que tinham de ser desfeitas de cada vez que passava um carro.

Esse futebol de rua só tinha duas cores: vermelho e verde. Ou eras do Benfica ou do Sporting, mesmo que não fosses de nenhum. Às vezes, era esse o critério para fazer as equipas.

Alguns ostentavam as camisolas dos respectivos clubes, réplicas marteladas, adquiridas pelos pais na Feira da Ladra por um preço mais curto.

Lembro-me daquele dia, algures em 1994. Tinha sete anos, idade para fazer merda e, por isso, passava metade do tempo de castigo. E castigo para mim traduzia-se em não poder sair de casa. O meu brinquedo favorito em miúdo foi sempre a liberdade.

Como não podia ir dar uns toques, fiquei na sala a enfadar-me em frente a uma televisão sem comando e ainda senhora da sua programação. Estavam a passar resumos dos jogos de uma nova e inovadora Liga dos Campeões. Só que eu era um bocadinho "osvaldo" e não ligava a futebol. Pelo menos, não ao factor clubístico em si. Nessa altura, nem sequer tinha clube. Gostava de jogar, não de ver.

Quando as palas do Weserstadion surgiram no ecrã da Telefunken castanha do meu pai não liguei muito. Mais um resumo. O campeão da Alemanha contra o campeão português. Werder Bremen x FC PortoMeh.



Fiquei hipnotizado. Confesso que foi a primeira vez que me arrepiei com o futebol.

O pontapé de Rui Filipe agarrou-me: que bilhete! Ele que viria a deixar tantas saudades nesse mesmo ano. Foram precisas uma década e o advento da internet para perceber que aquele pontapé fortuito tinha sido desviado. Shame on me. But still, what a strike!

Couto, que patrão. Sob aquele cerco verde lima após o nosso primeiro golo, mostrou uma frieza assinalável. Dei por mim a desejar que cortasse mais uma bola, sempre que ela pingava na área. E ele cortava.

Segunda parte, golo de Secretário. A classe com que meteu o lateral alemão no bolso fez-me pensar que um dia gostava de vir a ter aqueles pezinhos. Mais tarde, arrependi-me. Mas ainda hoje considero que foi dos laterais mais sólidos e consistentes a vestir a nossa camisola.

Querer querer, queria ser como Domingos. Entrou para dourar ainda mais aquele capítulo e deixar o campeão da Alemanha de palmas coladas no rosto.

E Kostadinov, Drulovic, Baía e todos os outros. Magníficos!

Não quero enganar ninguém. Não foi nessa tarde que passei a ser o portista mais ferrenho do mundo ou coisa que o valha. Mas a química foi irreversível. Como aquela mulher com quem trocaste um dia o olhar mais intenso da tua vida e, quando deste por ti, estavas no altar à sua espera. Assinei a minha entrega naquele momento.

Ser portista em Lisboa nunca foi fácil. Qualquer dragão lisboeta da minha geração saberá certamente o que quero dizer. Desde '94 cresci a defender este brasão com todas as minhas forças em território adversário. Fui até onde consegui. Nunca tive qualquer receio ou reticência em afirmar o meu portismo, mesmo sabendo que isso tinha inevitavelmente consequências. Reagi sempre. Até já levei na tromba por isso.

Sim, eu sei. Sou um bocado doente por este clube. Racional, mas louco. É quase paradoxal.

É por isso que a cada nova época que se inicia sinto-me criança outra vez.

Como se fosse portista pela primeira vez, como se esta ligação renovasse contrato, com a mesma emoção de sempre, por mais uma época, ainda que saiba que o contrato é vitalício e que estou vinculado a esta paixão, por vontade própria, até à morte.

Hoje, já não tenho sete anos. Cresci, estou diferente. Lisboa também.

O FC Porto deixou de provocar indiferença, passou a marcar a diferença. O FC Porto já não é tabu, mas assunto central. Há respeito, há admiração, há raiva. Há camisolas azuis-e-brancas nos ringues, nas praias, nas ruas, nas escolas. Há mais azul na capital. Há FC Porto em Lisboa.

Caro Lope, dentro de poucas horas (re)começa a saga de sucesso que o FC Porto tem escrito nas últimas décadas. Peço-te: não belisques o que exigiu tanto sacrifício a erguer por parte daqueles que, como eu, sofrem com este amor à distância.

Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. Uma vez mais.

14 comentários :


  1. @ drax

    Hoje já não tens sete anos? Desculpa, mas este texto desmentem te, evidenciando toda a criança, todo o puto, todo o catraio, todo o chavalo que ainda subsiste dentro de ti :)

    PS:
    'muitos parabéns!' pelo espaç. Gostei muito. Ganhaste um cliente

    abr@ço
    Miguel | Tomo III

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Vindo de quem vem, é uma enorme honra.

      O Miguel é um verdadeiro embaixador deste emblema. :)

      Muito, muito obrigado.

      Eliminar
  2. Ena... Isto é mesmo uma bela crónica a mexer com o coração e que nos faz pousar num galho da saudade, qual pensamento a voar até aos tempos em que nos começamos a ser portistas.
    Abraço de parabéns.
    Armando Pinto
    Memória Portista

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, caro.

      Estes dias deixam-me sempre assim: nostálgico.

      Forte abraço.

      Eliminar
  3. Muito bom este pedaço de memória! Eu que sou portista portuense, também sei o que é sê-lo em Lisboa (apenas não levei na tromba, fiquei sempre pelo quase). Tenho mais uns anitos, mas a história é a mesma. Lembro-me bem de ter que ir à casa do Porto na Av. Liberdade para conseguir ver os produtos nossos jogos das primeiras champions, porque em todo o espaço público via-se apenas os outros a jogar.

    Vamos a eles carago!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sem dúvida. Felizmente, até isso mudou. Hoje já me sento num qualquer café de Lisboa a ver um FC Porto x Setúbal e não sou o único a arrepiar cabelo com as nossas jogadas de perigo.

      Claro que há sempre aquele café do Zé Tuga que não tem a TV no FC Porto porque "prefere ver o Real Madrid".

      No entanto, regra geral, já temos muita presença em todo o lado. Nem que seja porque nos querem ver perder.

      Abraço, Lápis.

      Eliminar
  4. Adorei esta crónica... continua e os meus parabéns absolutamente arrepiante...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Vítor. Tentei ser fiel naquilo que vivi nestes 28 anos de dragão ao peito. Nunca foi fácil, mas isso torna tudo mais saboroso.

      Forte abraço!

      Eliminar
  5. Só escreve assim quem sente.
    Um abraço desde a Figueira da Foz,

    Nuno Simões

    ResponderEliminar
  6. Só escreve assim quem sente.
    Um abraço desde a Figueira da Foz,

    Nuno Simões

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Tiago.

      Belíssima terra a Figueira. Tenho muitos amigos aí, na zona da Ereira e Montemor.

      Um forte abraço para ti, meu caro.

      Drax.

      Eliminar
  7. Drax,

    Caraí.... Parabéns!!!! Ganda texto... Apesar de um pouquinho mais velho e, Portuense, senti cada palavra escrita!!!

    A minha memória do "clic" foi a final de Viena de 87....

    Entrei incontáveis vezes na antigas antas, de mão dada com um perfeito desconhecido, porque eu e os meus amigos, descobrimos que se pedissemos aos senhores que iam a passar se nos levasse como se fôssemos filhos .... Não pagavamos!!!!

    Isso d ser Portista em Lisboa descobri ha pouco tempo.... Vou la todas as semanas e ja arranjei alguma "chatices"... Mais pq não estão a dar o Porto na champions.... ;-)

    Continua.... Um leitor assíduo... ;-)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, caro Xebeu.

      Esse truque só para poder ver o FC Porto é de rei! Paixão que não se explica.

      Quanto ao "ver" o FC Porto numa TV de Lisboa, percebo-te; sei o quão penoso pode ser.

      Antigamente, era um problema crónico meu, visto não ser assinante da SportTV e os streams da altura terem a qualidade de uma batata. Agora, já consigo contornar isso.

      Obrigado pelo reconhecimento. Espero não desiludir.

      Abraço!

      Eliminar
    2. Lembro-me bem de ir com o meu pai às Antas e de ele, a uns 50 metros dos torniquetes, começar a procurar ganapos a quem dar boleia. Regra geral, entrava sempre um connosco :-)

      Eliminar

Comenta com respeito e juízo. Como se estivesses a falar com a tua avó na véspera de Natal.